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14 fevereiro 2010

a propósito do Haiti...

Deus não é haitiano
Os brasileiros inventaram a expressão "Deus é brasileiro", a propósito do futebol. Outras nações, noutras alturas, reclamaram a divindade como sua. Mas duma coisa tenho a certeza: Deus pode ser brasileiro, guineense ou somali. Mas não é haitiano.


É como se uma mão gigante tivesse descido dos céus e espalmado Port-au-Prince, capital do Haiti. Mas não satisfeita, a mão gigante rodou para um lado e para outro, esmigalhando tudo o que conseguiu apanhar.

O sismo – os haitianos não sabiam que a terra podia tremer – arrasou, mais do que milhares de pessoas que seguiam a sua vida num fim de tarde duma terça feira, o sismo deixou a nu as fragilidades do país mais pobre do continente americano – se bem que o Haiti é África –, arrasou um país inteiro que não sabia o que fazer nem como reagir, arrasou um estado frágil, corrupto e miserável, arrasou o sentimento dos haitianos e arrasou até as crenças religiosas, porque os mortos têm muita importância, os enterros são a forma dos vivos darem dignidade a quem morre e as valas comuns, sem cânticos nem choros, arrasaram a alma haitiana.

Mais do que o Haiti, os haitianos ficaram à mercê da fúria da natureza, abandonados e sozinhos, de mão estendida à caridade internacional que chegou depressa ao aeroporto mas leva muito tempo a chegar às ruas.

Com ou sem sismo, no Haiti, "é preciso lutar para sobreviver todos os dias", explicou-me Philippo, que nos serviu de tradutor por uns dias.

Quando o sol se levanta, a meio da madrugada, o despertar é para a sobrevivência com menos de um euro, um dia mais. Não me parece que se deva chamar vida à sobrevivência.

O Haiti esta para ali, metade de uma ilha, que fala francês, ao lado da outra metade, que fala castelhano. Como dois irmãos, um rico e outro pobre, com ódios centenários entre um e outro lado, lutas fratricidas, guerras por um pedaço de terra no meio do mar.

"Estou vazia, tenho fome. Podes fazer algo por mim?", dizia uma das milhares de passageiras do barco que zarpou da capital arrasada em direcção ao outro lado da ilha. Não lhe perguntei o nome. Disse apenas que tudo o que podia fazer era uma reportagem. "Isso? Mas e agora, já? É que eu tenho fome…" Ainda lhe disse "boa sorte", ela ainda me respondeu "para ti também".

"O nosso filho tem 3 meses e há duas semanas que não toma leite. Podes ajudar-nos?", pediu-me um jovem casal de haitianos que vieram juntos, de mãos dadas, banho tomado num balde e roupa impecável, saídos de uma das barracas erguidas como tecto no… separador central da auto-estrada. Não lhes apontei os nomes. Prometi apenas que iria tentar ajudar e saí dali, depressa, antes que, diante de dois jovens que sobrevivem todos os dias e que estavam à procura de leite para um bebé de três meses, fosse, dos três, eu, o único a deixar-me ir abaixo. Apeteceu-me chorar.

O resto? Não sei. Está tudo dito, mostrado, relatado, comentado.

Quando saí de Port-au-Prince já tinha saudades mas não consegui explicar ao nosso motorista o que queria dizer a palavra.

Há muitas coisas que não sei… mas há uma que sei. Sei que sei.

Deus, de certeza, não é haitiano.

por Pedro Cruz . Jornalista SIC . http://www.sic.pt/

DOMINGO, 14 DE FEVEREIRO DE 2010

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