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10 maio 2006

Miguel Esteves Cardoso

Elogio ao amor
"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso"dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada umcomo o clima.O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

05 maio 2006

o início de um sonho... um livro...

Quem teria alguma vez pensado que aquilo era possível?
Ninguém, ninguém mesmo, e eu menos ainda do que qualquer outro: mas o que se refletia no vidro do meu computador eram de facto os meus olhos, os meus cabelos soltos e castanhos, as minhas faces pálidas de tanto espanto, era eu, em suma, eu em carne e osso, sentada e preparada para fazer algo para uma pessoa que sempre me ensinou tudo, sempre me disse tudo, sempre me quis fazer ver tudo, resumindo ... tudo!

Estava ali, em equilíbrio sobre um monte de celulose e de resíduos orgânicos, desde que a minha cabeça, como um grande ovo de avestruz de grandes dimensões mas de poucas invenções, tinha parado para pensar, refletir, estudar porque caminho iria nesta tarefa aflitiva que me tinha sido pré-destinada. Estava ali e, a partir desse momento, fiquei sempre sentada diante do ecrã, beliscando apenas de vez em quando uma perna ou uma face para ter a certeza de que estava mesmo sentada na secretária e não na doce praia de S. Martinho, onde a areia, o sol e a água se tornam num tudo para mim, nestes dias que hoje em dia se vive.
Na realidade, a minha permanência naquele estranho local não era devida a uma mania suspeita de gostar de escrever, mas apenas do facto de ter...
...de ter uma vontade imensa de escrever.
Presumo que tenha sido esta estimulação que me tenha trazido até aqui, pois estou estoirada de tanto pensar o caminho que percorri, o que fiz antes de me sentar nesta cadeira.
O meu reflexo continuava à espera de um movimento, de uma outra posição, de uma outra feição deste meu rosto, que pela primeira vez eu achara lindo, e por isso mesmo, não o achara meu. Lindo como todas aquelas teclas que aguardavam uma delicada batidela dos meus dedos que eu agora via refletidos no ecrã. As minhas mãos sobrevoavam a testa franzida, os meus olhos, que continuavam, impávidos e serenos, vidrados na pequena mancha preta.
Imaginei-me, de novo, naquela praia real dos meus sonhos, nadando nas águas limpas e azuis do oceano que banha a nossa costa. Nadei, nadei, mas continuava-me a sentir sempre forte, sempre capaz. Lentamente, o sonho foi acabando e senti uma ligeira diferença nas sensações e sentimentos que me preenchiam.

Tive que voltar à realidade que é a vida.
Portanto, estava, sentada, e isso era o incrível de toda a minha história, e o que, pela primeira vez diante da minha imagem refletida no aparelho, me deixava perplexa e assustada.
Sentia-me assim, não porque fosse uma indivídua inteligente e imaginativa, uma daquelas que com um estalar dos dedos são capazes de concretizar um livro ou pôr em prática um esquema grego, nem porque tivesse descido um anjo à terra e me tivesse concedido um desejo; não, a minha ignorância ficava unicamente a dever-se ao facto de ter decidido, desde o dia em que nasci, que a minha vida seria uma vida tranquila, realmente tranquila. Por isso, durante dez anos, tinha andado sempre entre pessoas e coisas com gestos carinhosos e cautelosos, sem nunca dar um passo em falso.
Entre lágrimas e abraços, risos e pedras, discussões e pedidos de desculpas, tudo acabava por se resolver, umas durando mais tempo que outras, mas sempre acabando (isto durante dois eternos anos). Nesses mesmos 730 dias as coisas foram dando para quatro rebeldes raparigas sobreviverem.
Tudo começou num dia frio e chuvoso de Setembro, onde o sol não brilhava, os pássaros não cantavam, mas quatro meninas opunham-se ao dia, pois elas sorriam e levavam a vida com ela merecia.

Eram algo que destacava naquele dia tão temperamental. E essa, era a única característica que possuíam em comum.
Algo que em redor delas se passava ou era lindo ou era belo, tal como elas. De facto, elas sim eram o sinónimo de beleza!
Tudo parecia perfeito. Apesar de saberem que era fruto da sua imaginação, elas realmente ouviam o chilrear dos pássaros e o bom dia alegre das pessoas que passavam na rua. Era surpreendente porque quase tudo se baseava nas suas gargalhadas e nos seus sorrisos, o foco da vida viva.
Incrivelmente, para elas, o sol também brilhava naquele dia. Aliás, todos os dias brilhou, mesmo nas alturas em que fosse mais difícil de compreender ou perceber o porquê.



A partir do momento em que se identificaram como um único elemento, as quatro meninas viveram momentos únicos nas suas vidas.
Esse dia de Setembro, apesar de ter sido o primeiro, não deixou de ser menos importante
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